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50 tons de preconceito, repressão sexual e machismo

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Texto de Liliane Gusmão para as Blogueiras Feministas.

O filme ’50 tons de Cinza’ chega finalmente aos cinemas. E com ele voltam as questões sobre a trilogia. Eu li os livros, mais de uma vez. Eu li sobre os livros em vários locais diferentes. E fiquei intrigada em descobrir por quê esse livro, que me provocou tanto incomodo, fez e faz tanto sucesso. Eu não sei se descobri, mas queria compartilhar o que penso com vocês.

Para começar, eu li o livro em inglês numa cópia de revisão que foi disponibilizada na internet quando o livro foi lançado em português. Eu li porque sou curiosa. Nunca tinha lido nenhum livro de literatura erótica e o mais perto que cheguei de pornografia foi ‘Delta de Vênus’ de Anaïs Nin.

Antes de ler o livro, li sobre ele. Muita gente, dizendo que não leu e não gostou. Gente dizendo que era muito mal escrito e que não passou da página 20. Gente dizendo que não leu porque era ofensivo demais. Enfim, era um consenso, nas minhas relações, que todo mundo achava que o livro era uma porcaria. E foi ai que ele me conquistou. Eu tinha que ler esse lixo pra ter minha opinião sobre isso. Foi por isso que eu li o Alquimista de Paulo Coelho, todo mundo falava tanto sobre o livro que eu tive que ler.

A primeira coisa sobre o livro é que, como literatura erótica, ele é uma decepção. Especialmente para quem, como eu, queria ler um livro sobre BDSM. O livro é érotico, mas mesmo para uma pessoa como eu — heterossexual e monogâmica com mais de 40 — é um livro bobo. É um romance de banca de revista, escrito por alguém com um catálogo de sex toys do lado, só que o manual dos sex toys é ultrapassado.

Mas isso não descobri lendo o livro. Lendo o livro eu fiquei incomodada com o roteiro. Uma história tipo Júlia, moça linda e pobre se acha horrível e encontra rapaz lindo e rico que se apaixona por ela, se casam e terminam todos felizes no gramado da mansão dele, com suas crianças lindas ao redor. Um livro extremamente clichê.

Cena dos filme '50 Tons de Cinza' (2014).

Cena dos filme ’50 Tons de Cinza’ (2015).

Eu fiquei incomodada com o que é dito sobre BDSM no livro, o BDSM é tratado como um desvio de caráter, uma doença cuja cura é o amor. Fiquei chocada como a mocinha é preconceituosa, mesquinha, machista e extremamente moralista. Fiquei incomodada como esse romance é misógino, como o galã — um cara de 27 anos — tem uma mentalidade mais atrasada que a do meu pai, que se fosse vivo teria 80 anos. E fiquei incomodada com outras coisas que não soube elaborar, não soube apontar. Fiquei intrigada, como um livro tão bobo, tão pobre em BDSM podia ser considerado um marco no segmento e podia ser consumido tão vorazmente.

Então, comecei a buscar pessoas que tivessem lido o livro e estivessem dispostas a discutir sobre ele. E isso se provou impossível. A maioria das pessoas da minha entourage não estava nem aí pro livro. Então, alguém me indicou um blog que estava resenhando o livro. E, partindo daí, eu encontrei a Jenny Trout, que é escritora de romances eróticos e que tem um blog onde encontrei uma resenha dos livros da série, capítulo por capítulo, apontando todos os absurdos e foi aí que eu percebi o que tanto me incomodava.

A trilogia dos ’50 Tons de Cinza’ é uma fanfiction baseada na série ‘Crepúsculo’ de Stephenie Meyer (lembram do vampiro apaixonado?), que fez um baita sucesso entre os leitores e foi adaptado (ou seja, mudaram os nomes dos personagens) para poder ser vendido como obra original. Sim, amiguinhes esse é o mercado editorial.

Para quem lê inglês e se interessa pelo tema, mas não quer ler o livro, eu sugiro a leitura da resenha feita por Jenny. Ela é hilária e expõe toda a problemática do livro. Para quem quer ler literatura erótica, ela também é uma boa opção.

E agora, faço um resumo do que é problemático. Christian é um stalker, manipulador, extremamente machista e condescendente. Ana é moralista, mesquinha, preconceituosa e sem nenhuma autoestima. Ele teoricamente seria o mentor de BDSM dela, mas não se comporta assim. Ele nunca informa a ela nada sobre as cenas que eles vão fazer. E por isso ela nunca pode consentir, que é o mais importante nesse tipo de prática, sobre o que vai ser feito. Ela não tem parâmetros para entender o que está vivendo (a relação BDSM) e ele se aproveita disso, da fragilidade e desinformação dela. No que tange o BDSM, o livro é um manual do que não deve ser feito e a utilização de brinquedos sexuais é limitadíssima. E olha que eu não sou praticante de BDSM e pelo livro fica claro que a escritora também não é.

Os personagens são rasos e sem nenhuma consistência ou humanidade. As cenas de BDSM são poucas e muito repetitivas, as cenas de sexo tediosas até. Em certo ponto da trilogia eu pulava as cenas de sexo porque é sempre mais do mesmo. As personagens não falam abertamente de sexo, os genitais não são nomeados, em alguns momentos tive a impressão que o romance tinha sido escrito por mim, aos 11 anos de idade.

Em mais de 1500 páginas de um romance erótico, a palavra pênis aparece uma única vez, e não me lembro de ter lido a palavra vagina ou clitóris ou qualquer um de seus apelidos no livro inteiro. Ela fala de sexo anal como algo sujo, proibido e pecaminoso.  Quando ela se refere ao pênis de Christian é sempre como “a ereção”, o que me levou a pensar que ele na verdade era o dono da farmacêutica que produz o viagra.

A mocinha é tão pudica e alienada que acredita em cavaleiros que resgatam princesas. Ela repete insistentemente que o amor dela vai libertar ele das trevas que são seus desejos, ou seja o BDSM. E foi aí que eu entendi porque esse livro faz tanto sucesso. E é bem triste que ele faça tanto sucesso. O sucesso dos ’50 Tons de Cinza’ é baseado no preconceito, na repressão sexual e no machismo da nossa sociedade.

Penso em ver o filme. Há notícias de que algumas características e diálogos do livro foram modificadas e por isso a própria autora estaria propondo um boicote. Há também ativistas propondo um boicote ao filme, por glamourizar relações de abuso e violência doméstica. A autora se defende dizendo que a história relata uma fantasia e que todas as mulheres tem direito a elas. Lamento apenas que seja a fantasia do príncipe encantando reeditada com todo seu moralismo. Como diz Natalia Engler em sua crítica: “o público merecia mais. E não só em termos de sexo. Mas isso não deve ser um problema para a bilheteria”.

No fim, acredito que muitas pessoas gostam dessa trilogia porque os livros são o moralismo fantasiado de sacanagem. É uma relação entre duas pessoas em que uma é extremamente controladora e a outra, que não tem voz no relacionamento, é a salvadora. Não há novidades, nem mesmo no que se refere ao prazer feminino, muito menos aos papeis que homens e mulheres representam. É tudo preto no branco.

+ Sobre o assunto:

[+] 50 tons de “amiga, pare”. Por Letícia B.

[+] Eu tentei gostar de 50 Tons de Cinza. Por Ana Luiza Figueiredo.

[+] BDSM e violência doméstica: saiba a diferença. Por Jarid Arraes.

Liliane Gusmão

Feminista, sim eu sou!

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